Um paciente morreu.
Nenhuma surpresa para o
médico que trabalha num serviço de emergência. A morte é uma presença
constante. Não que amigos sejamos. Há um respeito mútuo. Às vezes ela vence,
outras: eu. Traiçoeira que é, ela retorna outro dia e aí não tem jeito.
Encontrar-se com ela é o fim de todos os homens.
Mas como dizia: um paciente
morreu. Chegou ao pronto socorro um senhor de 85 anos em parada
cardiorrespiratória. Nossa equipe tentou trazê-lo à vida e nossos esforços
foram incapazes de reverter aquele quadro. Àquele paciente chegara a sua hora.
Coube a mim, o mais velho do
grupo (mas com metade da idade do paciente) informar aos familiares o ocorrido.
Ser-me-ia difícil? Não. Estava triste? Abalado com o ocorrido? Não. Enfrentar a
morte é nossa rotina. Não seria a primeira vez tampouco a última. Era mais um
senhor idoso que encontrou o fim de seus dias. Lá fui eu.
Apontaram–me uma senhora
sentada num canto. De longe achei que deveria ter uns 70 e poucos anos. Ao
chegar mais perto a vi: bem arrumada, maquiada, com uma impecável saia, blusa
vermelha e colar. Cabelos louros pintados, sentada com as pernas cruzadas,
coluna ereta e uma postura elegante. Apresentei-me e sentei a seu lado. Contei
o estado grave que o esposo adentrara ao hospital e as infrutíferas manobras de
ressuscitação. Enfim, ele falecera.
Ela virou-se a mim e
perguntou brandamente: “Doutor, meu marido se foi?” Respondi afirmativamente e
assenti com a cabeça. “Doutor, ele morreu?” Respondi sim.
Imaginei que ela fosse cair
aos prantos ou desmaiar. Nunca se sabe a resposta dos familiares nessas horas.
Ela olhou ao horizonte e disse: “Ah Doutor. Por que ele foi embora? Vai ser
muito difícil. Será difícil pra todos nós. Mas pra ele será muito mais.”
Como assim? Pensei eu.
Entendo que a família sentirá falta afinal foram anos e anos de convívio. Mas e
ele? Como ele sofrerá mais? Afinal não morrera?
Enfim, percebi que deveria ouvir essa mulher. Havia algo mais a
aprender. Ela percebeu que eu estava atento e interessado e continuou a falar.
Conheceram–se adolescentes.
Ela 14 anos e ele 18. Ao se encontrarem na missa, à primeira vez, se amaram só
de olhar, segundo suas próprias palavras. Foi um vendaval. Naquele momento
selaram suas vidas e souberam que seriam um do outro, para sempre. Foi um
casamento de almas. E sendo amor, o seria para sempre.
Quando a gente se casa há um
erro no cerimonial. O clérigo costuma dizer
“até que a morte os separe”.
Ouso dizer, e esta mulher pode ser a prova disso, que há amor que nem a morte é
capaz de separar. Os Romeus e Julietas ainda existem.
Essa senhora me contou do
trabalho de ambos por toda a vida, da dedicação e amor aos filhos e o grande
respeito e carinho de um pelo outro. Respeito, consideração, partilha, entrega
e afeto. Brigas e desentendimentos. Mas nunca que os separasse por muito tempo.
Nada que um abraço, um olhar ou um pezinho roçando o outro debaixo das cobertas
não fosse capaz de resolver. Pensar e cuidar um do outro, sempre.
Ela me fez a difícil
pergunta: “Doutor, onde será que está meu marido?” Titubeei e quando iria
questionar a crença dela, ela mesma o respondeu: “Doutor, ele deve estar num
lugar muito melhor! Mas independentemente de onde quer que ele esteja, eu tenho
certeza: Ele está com muitas saudades de mim!”
Foi o suficiente pra mudar o
meu dia.
E continuou: “Ele deve estar
muito bem. Só não está melhor porque não estou com ele. Ele está me procurando.
Deve estar me esperando.”
Emocionado, segurei a mão
daquela senhora. Queria ouvi-la mais, e se pudesse, daria a ela um microfone e
pediria que falasse alto a toda uma geração. Mas a plateia ali era eu. E havia
muito o que aprender.
Perguntou de mim, de meu casamento
e de meus filhos. Pediu que os amasse. Que fosse alegre, brincalhão e
divertido. Daqueles que rolam no chão com as crianças. Devotado ao lar e à sua
felicidade. Fiel e verdadeiro. As dificuldades viriam. Mas a casa fundada sobre
a rocha não cede às tempestades. E o amor é este fundamento. É a argamassa que
nos une, é essa coluna sólida que erige o edifício de nossas vidas.
Falou de minha profissão. Da
necessidade de médicos que sejam mais humanos e afeitos ao sofrimento dos
pacientes. Cuidadosos, afáveis e que não houvesse aquela empáfia. Concordei.
Afinal somos todos o mesmo pó.
Despedi-me. Ela agradeceu
nossos esforços e o momento compartilhado. Dei um abraço nessa professora de
saber viver e agradeci as palavras e as lições de vida.
Não sei onde eternamente
repousa o esposo amado. Quem sou eu pra saber onde está, e se está num lugar
melhor que este ou não. Tocou-me quando disse que ele deveria estar num lugar
melhor e que mesmo assim, sentia a falta do amor de sua vida. Ou seja, a glória
eterna não seria completa e sublime sem ela.
Muito me admira a envergadura
dessa mulher. Essa coluna pétrea fundida em amor a ponto de afrontar as glórias
do Paraíso.
Que o amor seja para sempre,
e nem a morte os separe.
Que lindo e verdadeiro.
ResponderExcluirQue Deus te abençoe primo, abraços Natalia
Parabéns. Excelente texto.
ResponderExcluirO verdadeiro amor nunca morre.
Emocionante
ResponderExcluirI Love it....
ResponderExcluirLindo texto!
ResponderExcluirLindo!!! Tudo bem por aí! ��
ResponderExcluirPreciso encontrar esta o inteligência emocional.
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