Pátio do Colégio - lugar onde surgiu a cidade de SP. |
Nasci e fui criado em São Paulo. Nasci no Hospital Samaritano. Fui criado num bairro de periferia. Como toda criança criada na periferia joguei muita bola na rua com os pés descalços. Calçados pra se jogar futebol eram luxo desnecessário. Quando muito bastavam um "Bamba" ou um "Kichute". Quando chovia era especial! A garotada ía ao campinho de futebol pra jogar bola no meio do barro. As mães que o digam a delícia que era lavar a roupa depois...
Na medida em que cresci a vida tomou outro rumo e vivo no estado do Paraná há 20 anos. Nele recebi a formação profissional, conheci a esposa (outra paulistana), casei, tive filhos e por lá ainda estou. Mas nunca deixei de amar São Paulo. Nunca deixei de admirar a bravura de sua história.
Estudei numa escola pública. A Escola Municipal de Primeiro Grau Prof. José Ferraz de Campos.
Em 1980 cursava a terceira série primária e aí conheci a melhor professora que tive na vida: Profa. Raquel Maria Chiari, que ainda vive, e não passa ano que eu não ligue a sua casa na cidade de Garça e dedique alguns minutos de sincera admiração e devoção. Inesquecível. Temida e mal entendida por uns, mais que amada por outros. Foi na sala de número 5 desta escola, na penúltima carteira da segunda fileira (contando da janela) que fiquei um ano das 11:00 às 15:00 recebendo seus ensinamentos e sonhando com os países por ela apresentados, as histórias, as brincadeiras, a oração de agradecimento a Deus pelo dia passado que era pronunciada no final da aula (e que meus filhos repetem toda noite uma versão parafraseada). Foi ali que uma grande paixão surgiu, paixão esta incentivada no âmbito familiar: a leitura.
Tornei-me membro da biblioteca pública da Lapa, na rua Catão. Freqüentava-a com assiduidade e foi por ela que tomei conhecimento de um de meus heróis, o Sherlock Holmes, de Conan Doyle. Li todo o conjunto emprestado da biblioteca (hoje tenho o meu em casa e eventualmente dou uma revisitada). E para a degustação de Conan Doyle, Machado de Assis, Vinícius de Moraes, Rubem Braga, Drummond, Sabino e tantos outros que paulatinamente tomava conhecimento, havia um local sagrado, o meu santuário particular: uma árvore. Nos fundos da escola quase que diariamente eu subia seus galhos. Ali ninguém me via, ninguém me achava, os berros de minha mãe por lá não ecoavam... Paz e isolamento total. E o cultivo desta nova e interminável relação: eu e os livros.
Biblioteca Mário de Andrade |
Algum tempo depois passei a freqüentar a biblioteca Mario de Andrade, no centro de SP. Ali os vôos foram maiores. Adorava ir à sessão de raridades e pegar edições autografadas de Mário de Andrade e Vinícius de Moraes. Eu passava o dedos em cima dos dizeres escritos à tinta (sob os olhares cuidadosos da funcionária) e eu me sentia como que transladado àquela época e a aquele momento. Era como se eu estivesse ao lado no dia que Mário de Andrade autografara e dedicara aquele exemplar.
Casa de Mário de Andrade |
Depois descobri que Mário de Andrade residira à rua Lopes Chaves 546 e que parte de sua residência era mantida do jeito que ele deixou em 1945. Fui lá. Os mesmos móveis, parte da biblioteca, o piano... Também imaginava as reuniões ali ocorridas na época do modernismo. Tarsila sentada de um lado, Oswald de outro. Nesta época iniciei a leitura de suas cartas a Pedro Nava, a Drummond e Manuel Bandeira. Um mundo novo e cativante. Penetrar nas mentes e no cotidiano destes monstros sagrados da literatura brasileira era muito edificante.
São Paulo é apaixonante. Embora eu more noutra cidade não consigo ficar muito tempo sem revisitá-la. Lembro Fernando Pessoa ao ver Lisboa: ..."outra vez te revejo, o coração mais longínquo, a alma menos minha"... Sempre me emociono ao passar pelo Ibirapuera e ver o Obelisco aos Heróis de 32. Um belíssimo capítulo da história do Brasil e da bravura do povo paulista. NAO DUCOR DUCO - conduzo, não sou conduzido. Marrey Junior, Pedro de Toledo, Campos Salles, Barão de Ramalho, Benedito Tolosa, Guilherme de Almeida, Arnaldo Vieira de Carvalho, Flamínio Fávero, Carlos da Silva Lacaz (carinhosamente chamado por Ricardo Veronesi de "o Dom Quixote de Guaratinguetá")... as Arcadas do Largo de São Francisco, os monumentos das faculdades de direito e medicina dedicados aos alunos cujas vidas foram ceifadas na Revolução Constitucionalista de 1932 ...
"Quando se sente bater
No peito heróica pancada,
Deixa-se a folha dobrada
Enquanto se vai morrer."
No peito heróica pancada,
Deixa-se a folha dobrada
Enquanto se vai morrer."
Versos de Tobias Barreto, no Monumento ao Soldado Constitucionalista de 1932
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Um dia decidi visitar minha antiga escola, em um destes meus retornos. Revi as salas de aula, as mesmas carteiras, as mesmas lousas, os corredores que por anos viram meus passos, e por fim, como sempre, reencontrar minha velha árvore... Qual não foi a surpresa: ela não mais estava lá. Em seu lugar havia uma placa de concreto. Não sei porque o fizeram. Parte de minha história se foi. Quisera eu ao menos que seu tronco fosse empregado no feitio de centenas de lápis, e assim mais crianças fossem alfabetizadas. Ou móveis ou carteiras escolares criadas e mais crianças recebessem instrução. Ou quiçá, já que foi extirpada, outras duas ou mais fossem plantadas, e num futuro crescessem seus galhos, e um dia uma criança encontrasse sossego e amparo sob suas sombras e pudesse amar os livros...
Não sei o que de ti foi feito. Vejo a placa de concreto em teu lugar e só posso imaginar que pra mim esta é a tua lápide, e que pra mim você sempre viverá. Descanse em paz, velha amiga! A tua morte não foi em vão!
A São Paulo de Piratininga me traz uma série de recordações. "Outra vez te revejo, o coração mais longínquo, a alma menos minha"...
continua...