Naquele ambiente que se respira
história da medicina, lado a lado, comentávamos a recente perda para São Paulo,
o Brasil e a humanidade.
Depois conversamos por algum
tempo sobre família, minha cidade e depois ainda falaríamos algumas vezes ao
telefone. Dois anos depois chegaria sua vez.
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Conheci Prof. Veronesi enquanto eu
era aluno da faculdade de medicina em Londrina. Sempre atento às biografias
médicas e ao estudo de nossa história caiu-me às mãos (o dono do exemplar é meu
colega de turma Paulo Navarro) a biografia do Prof. Renato Locchi, anatomista,
discípulo direto e herdeiro da tradição de Prof. Alfonso Bovero, nome este que
renderia um adjetivo cujo significado era austeridade, dignidade, retidão e
competência. Dos anos 30 aos 70, os possuidores de tais qualidades eram
nomeados “à boca pequena” de “boverianos”.
Após a leitura deste livreto, de
autoria do Prof. Liberato Di Dio (que também conheci através dos Professores
Lacaz e Veronesi) decidi conhecer mais sobre a história da medicina em SP e
acabei conhecendo o Prof. Ricardo Veronesi.
Descendente dos “italianinhos do
Brás” (como ele dizia), na adolescência cogitou ser oficial da Polícia Militar
de São Paulo (antiga Força Pública). Tal ideia foi deixada de lado por
influência de outro nome sagrado da cardiologia brasileira: Bernardino Tranchesi.
Seu grande colega de turma era outro nome honrado da cardiologia: João Tranchesi.
Formado médico em 1946 cuja
nome de turma foi o Prof. Renato Locchi. Especializou-se em infectologia e em
especial virologia. Currículo invejável, fundador de sociedades, detentor de prêmios
internacionais e autor de leis que trouxeram grande benefício à coletividade.
Em 1960 lançou seu tratado que ainda hoje é referência na especialidade.
Conheci pessoalmente em 1993.
Daí os encontros e conversas se tornaram frequentes. Ajudava-me em meus estudos
de história e falava das dificuldades da carreira médica, dos sucessos, de seus
trabalhos, dos vieses. Falava de seus colegas de turma, das saudades da época
de faculdade e de seus inesquecíveis mestres. Com muito carinho comentava de
sua saudosa esposa Ofélia. Suas filhas e netos eram motivo de grande orgulho.
Veronesi era polêmico.
Conservador nas esferas políticas. Possuía seus desafetos políticos e também no
próprio meio médico. Talvez hoje, se vivo, sua voz seria mais ouvida em virtude
da podridão política que vivemos. Seria um feroz combatente da esquerda
brasileira e de toda a chaga que nos tem imposto.
Um dia me surpreendi com um
telefonema. Fora convocado a comparecer em sua casa, no bairro do Pacaembu, em
São Paulo.
Marcamos a data que não
interferiria em meu calendário escolar e lá compareci.
Chegando lá, havia uma papelada
amarela jogada nos sofás e no chão. Fotos e anotações. Queria compartilhar
comigo seu mais novo trabalho: a organização das comemorações do cinquentenário
de sua turma de medicina. Mostrou-me cartas, fotos, o projeto do livro que
estava confeccionando com outros colegas de turma. Parecíamos duas crianças
ajoelhadas vendo papéis. Mostrou parte do livro escrito à mão por ele.
Perguntava o que eu achara, pediu algumas opiniões (quem seria eu pra
aconselhar um homem de sua envergadura?).
Meses depois eu recebia em casa
um exemplar com uma belíssima dedicatória. O exemplar está guardado com zelo. A
dedicatória muito me enlevou. Não mais a um mero aluno, e sim ao “amigo”.
Amizade que sempre me orgulhei.
Um de seus ensinamentos que
talvez mais me tenha marcado: “Orgulhe-se de sua escola! Honre sempre o nome de
sua escola, e nunca se esqueça dela!”
Tenho tentado, mestre! Tenho
tentado!
Numa de nossas conversas,
regadas com um pouquinho de uísque, ele me disse: “Você é um idealista e
valoriza a história. Isso é raro hoje em dia. Se Locchi vivo fosse e te
conhecesse, seria considerado um boveriano”.
Quem me dera, Professor. Quem me
dera! Falta muito, muito...
Hoje faz 10 anos que o mestre
se foi, aos 85 anos.
Saudades...