Uma
rua como aquela
Rua Artur Orlando - São Paulo. |
Tenho uma dívida moral
com o meu passado, com a minha infância. Não me recordo o ano, se 1981 ou 1982,
quando éramos obrigados a ler na escola (Escola Municipal de Primeiro Grau
Prof. José Ferraz de Campos, em São Paulo) um livro a cada bimestre. Desta
leitura haveria uma prova pra averiguar se o aluno dedicara (ou não) tempo pra
se aprimorar nesta arte.
Já direi de antemão que o primeiro livro
(de leitura obrigatória) não o li! Até ontem, pelo menos.
Sendo relapso ao não ter lido o livro para a prova recorri a um de
meus amigos (amizade que existe até hoje, e não por este motivo!) e perguntei
sobre o livro. Ele me narrou a estória, os personagens e todo o enredo.
Acreditem: fui bem ao teste! E amarguei uma dívida moral com meu passado que a
encerro hoje, 30 anos depois. Nome do livro:
”Uma
rua como aquela”.
Na medida em que o Maurício Miguel (o
nome é real!) me contava sobre o livro uma angústia se apoderava de mim. Ele
resumia e aquilo me era um açoite! Como tive a estultice ao me privar de uma
leitura tão fascinante para a transição infância - adolescência! Como pude ser
tão vil?
No bimestre seguinte, arrependido por
minha conduta no anterior, recordo de ter lido o indicado: “O Menino e o
Presidente”. Ah meus amigos, foi mais ou menos por aí que a doença começou. Nunca
mais parei de ler e de fazê-lo compulsivamente. Vejo meu garoto de 8 anos já
com sua bibliotecazinha, vive lendo livros pela casa ou alhures e fico muito feliz
que a doença o tenha atingido. A menor também está no mesmo caminho. Curiosamente
tenho comprado e guardado todos os livros que foram indicados nos idos de 80.
Aproveitei e reli vários deles neste dezembro.
Retornando ao passado: o livro “Uma rua
como aquela” é sobre uma rua comum da periferia de São Paulo. As brincadeiras
de rua, os jogos de futebol, as árvores frutíferas da vizinhança, as primeiras
paqueras, brigas e por aí vai. Em minha busca ao passado encontrei uma edição
autografada pela autora num sebo de São Paulo. E é esta que leio.
Impossível para mim (um inapto aprendiz
de memorialista) dissociar a leitura do livro daqueles idos de 1980, na rua em
que vivi minha infância. Não há como lê-lo e não recordar da Rua Artur Orlando,
na periferia de minha querida São Paulo. Rua esta onde joguei bola, brinquei de
polícia e ladrão, amarelinha, esconde-esconde, beijo-abraço e aperto de mão,
mão na mula e tantas outras...
Lembro que a rua inicialmente não era
asfaltada. Era o lugar perfeito pra cavar os buraquinhos e jogar bolinha de
gude. "Médis quatro não dô nádis! Quatro e quatrinho!" Esses eram os
gritos dos viciados no "esporte".
Depois veio a fase da rua asfaltada. Nas
partidas de futebol os chinelos ou tijolos nos serviam de traves. Até porque
jogar bola no asfalto com tênis era um luxo desnecessário. Quanta tampa de dedão
foi arrancada nas calçadas da Artur Orlando. Depois as mães destes guerreiros vinham
com aquele "Merthiolate" que era a representação do próprio inferno
na terra. Queimava até a alma! Quanta saudade deste tempo.
Dia de chuva era quase que obrigatório
descer ao capinho do Fluminense (time do bairro) e jogar futebol no meio do
barro. Lama pura! As mães que o digam a hora que tinham de lavar roupa.
Havia duas casas que eram o quartel
general de toda a gangue. Ali todas as brincadeiras e festas eram planejadas.
Uma casa era a do casal Flávio e Nereide David. Sr. Flávio era policial
militar. Quem não o conhecia, ao ver aquele homenzarrão fardado com o semblante
sério, certamente teria medo ao mexer com as filhas deste senhor. Mas era a casca.
“Seu” Flávio era a bondade. Recordo quando pequeno me presenteou com um quepe
da polícia militar. O quão fiquei orgulhoso do mimo. Anos depois confidenciávamos
nossas experiências de leitores. Foi através dele que conheci Emilie Zolá. Dona
Nereide era o bom humor em pessoa. Alegre, feliz e brincalhona! Quanta saudade
de Dona Nereide. Precocemente partiu pro outro lado.
Talvez a casa mais alegre era a casa
imediatamente ao lado. A casa do "Seu João e Dona Maria". Ali era o
ponto de encontro da criançada. Um simpático casal de baianos cuja casa era de
todos. Toda a garotada a frequentava. As festas juninas, a fogueira, os amigos
secretos, Páscoa... Tudo era arquitetado pelos maiores (eu era da turma dos
pequenos). Lembro que uma vez foi encenada uma peça teatral baseada numas das
estórias de Maurício de Sousa, o "Cascão Borralheiro", interpretado
de forma "magistral" pelo meu irmão. A revista era de 1976. Acabo de
garimpá-la num sebo e a comprarei para presenteá-lo. Receberá o script original
de seus 15 minutos de glória na dramaturgia da periferia paulistana. Lembrará?
A garagem do casal Cunha foi modificada
em palco e lugares para a platéia. Os pais eram convidados e por um preço
módico assistiam às apresentações de seus filhos. O dinheirinho ganho, que era
pouco, era empenhado a comprar minúsculos ovos de páscoa para cada uma das
crianças.
Não havia luxo. O que havia, dinheiro
algum no mundo é capaz de comprar.
Foi nessa rua que meu irmão me ensinou
andar de bicicleta na sua “Fórmula C”. No
período de aprendizagem, ele me levava no cano da frente e brincávamos que a
rua era o rio Mississipi e a bicicleta era o barco Robert Lee. Não podíamos
cair dela que era afogamento na certa. Lembrará meu irmão disso?
As histórias do “Seu” João Canella: um
exímio artista plástico. Quantas vezes eu o admirava pintar suas telas naquele
ambiente denso de tabaco para cachimbo. Ele narrava os episódios que vivenciou
nos frentes de batalha da segunda grande guerra. Contava a Tomada de Monte
Castello, as batalhas pela Itália, os amigos cujo sangue jorrou e deram o
ultimo suspiro pelos campos da Itália. Sempre narrava com a fala mansa, a voz
embargada e os olhos chorosos. Depois de uma lágrima, uma profunda baforada de
cachimbo, ele dizia: “Não vale a pena morrer tão jovem. Guerra alguma vale a
pena”.
Os Devecchi, os Miguel, Petraca, Petrochelli, Ferrer,
Portapila, Moura, David, Cunha, Ageia, Gonçalves, Lopes dos Santos, Assalim, Castanha,
Martins e tantas outras famílias cujos pais e filhos foram personagens de uma
linda história: a história de nossas vidas!
Descobri que Artur Orlando foi jurista,
político e ensaísta falecido em 1916. Escreveu que:
"O
amor tem as suas razões, que a lógica não compreende,
como
o destino tem as suas ironias, que a razão não explica."
Eis
aqui, de maneira simples, umas linhas declarando meu amor pela rua de meu
passado, rua esta que visita meus sonhos.
Meu
querido amigo Maurício Miguel: obrigado por tua amizade de tantos e tantos
anos. Beirando os quarenta anos! Li o livro! Acho que esta dívida moral minha para
comigo mesmo está paga.
Obrigado
à rua Artur Orlando e a todos seus moradores. Jamais haverá neste mundo uma época como a que vivemos, época mágica, numa rua de sonhos, numa rua que nos trouxe à vida, que nos viu crescer e
desabrochar.
Jamais haverá ”Uma rua como aquela”.