Veremos em que dá...

Blog pessoal de Lucio Baena de Melo.

Li hoje que milhares de blogs são criados diariamente e não duram mais que 6 meses.

EIS MAIS UM FORTE CANDIDATO!

Tentarei escrever aqui alguns pensamentos, comentários sobre o dia a dia que se vive embaixo do sol...

Este foi o primeiro post e o deixarei aqui pois explica o título do blog: Um Peregrino.
Por que "Um Peregrino?"

domingo, 14 de dezembro de 2014

Waldir Eduardo Garcia. Um ano sem o mestre.

Hoje completa um ano de sua prematura partida.

Um saudoso professor uma vez ao homenagear seu antigo mestre, o disse: "Ele era do tempo que a Faculdade de Medicina formava homens, e não médicos."

Você era um desses: não apenas alguém com exímio conhecimento técnico. E sim um homem de brio. Um ser humano mais completo. Sabia medicina como poucos. E era honrado, humilde, caridoso e preocupado com os outros.  Entendia que a prática médica não era administrar medicamentos ou operar pacientes. Sabia que o relacionamento médico era parte da cura, e que se cura não houvesse, o sofrimento seria amenizado.

O que não sei dizer é como aliviar a dor que sua partida causou.

Por aqui tentamos dar continuidade a tua obra inacabada.
Saudades, sempre.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Prof. Carlos da Costa Branco

Prof. CARLOS DA COSTA BRANCO.
Dr. Carlos da Costa Branco


Se vivo fosse, o professor Carlos da Costa Branco hoje completaria 90 anos.

Dr. Carlos da Costa Branco formou-se pela 31a. turma de Medicina da FMUSP, em 1948. Foi aluno de um dos grandes baluartes da anatomia nacional, Prof. Renato Locchi; e aprendeu o ofício de cirurgião com um outro sagrado nome da medicina, Prof. Benedito Montenegro.

Mudou-se para Londrina no início da década de 50 e foi ativo no ensino e na prática médica por toda a sua vida.

Em 1962 ministrou a primeira aula de anatomia para o curso de Odontologia, na então Faculdade Estadual de Odontologia de Londrina (FEOL). Seus colegas de disciplina foram Profa. Odila Santiago e Prof. Máximo Gonzales Donoso. Quando eu era aluno do curso médico Dra. Odila estava prestes a se aposentar. Prof. Máximo foi meu professor da disciplina de Cirurgia Plástica nos idos de 90.

As aulas para o curso de Odontologia eram ministradas nos porões da Catedral de Londrina e posteriormente no Grupo Escolar Hugo Simas.

Em 1962 Dr. Carlos instituiu a "Missa ao Cadáver". Ato este em respeito àqueles que depois da morte, ainda auxiliariam a vida. Recordo que em 1991, quando iniciava meus estudos no curso de medicina, assisti a "Missa ao Cadáver" e lembro da bela homenagem lida por minha colega de turma, a Dra. Leda Calil.

Seguramente este costume foi adaptado da experiência que Prof. Carlos teve com seu austero professor de anatomia da FMUSP, o Prof. Renato Locchi. 


Renato Locchi
1896-1978

Este, tinha por hábito (no primeiro dia de aula de anatomia do curso médico) mostrar um cadáver aos calouros e explanar sobre o respeito para com o corpo humano e para o que ele representa. Aquele cadáver indigente que talvez em vida não obteve dignidade humana; agora, depois da morte, seria ofertado na manutenção da vida. Assim: toda a aura de respeito e de gratidão. Locchi também levava os alunos na sala de seu grande mestre: Dr. Alfonso Bovero. 





Alfonso Bovero
1871-1937

Prof. Bovero faleceu na Itália quando gozava de sua férias, em 1937. Ano a ano cada turma de alunos era convidada a conhecer a sala de seu mestre, que era mantida da forma como ele deixou. A escrivaninha, o avental talar, o velho tinteiro, a goma para colar correspondência e sua famosa varinha que usava para lecionar e apontar estruturas. Tradição e respeito.



Em meados da década de 60 é fundada em Londrina a FESULON (Fundação de Ensino Superior de Londrina). Esta fundação seria mantenedora do curso de Medicina em nossa cidade, em 1967. Assim se vê fundada a Faculdade de Medicina do Norte da Paraná, hoje nosso Curso de Medicina do Centro de Ciência da Saúde da Universidade Estadual de Londrina. Prof. Carlos da Costa Branco foi professor pioneiro de anatomia para as turmas de Medicina. 

Membro de várias associações de especialidades médicas, além de excelente didata e anatomista. Foi fundador da UNIMED em Londrina, professor habilidoso e Professor Titular de Anatomia do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Londrina (CCB - UEL).

Aos 51 anos, em 1976, sofreu acidente automobilístico e a comunidade médica perdia uma de suas mais rijas colunas.



Em 1997, o Museu Didático de Anatomia recebeu seu nome.

Seu filho, Dr. Carlos Augusto da Costa Branco optou pela carreira do pai e foi professor de várias turmas de Medicina, tenho sido meu professor nos idos de 1991-1992.

Que os mais novos saibam lembrar a memória destes que suas vidas foram dedicadas à causa do ensino e da arte hipocrática.


quinta-feira, 8 de maio de 2014

Ricardo Veronesi, 10 anos sem o mestre

             
  Nós estivemos juntos pela última vez em um velório. Em abril de 2002, nas dependências da Congregação da Faculdade de Medicina da USP, a comunidade médica rendia suas homenagens a um dos monstros sagrados da arte hipocrática: a morte de Carlos da Silva Lacaz. 


                Naquele ambiente que se respira história da medicina, lado a lado, comentávamos a recente perda para São Paulo, o Brasil e a humanidade. 

                Depois conversamos por algum tempo sobre família, minha cidade e depois ainda falaríamos algumas vezes ao telefone. Dois anos depois chegaria sua vez.
________________

                Conheci Prof. Veronesi enquanto eu era aluno da faculdade de medicina em Londrina. Sempre atento às biografias médicas e ao estudo de nossa história caiu-me às mãos (o dono do exemplar é meu colega de turma Paulo Navarro) a biografia do Prof. Renato Locchi, anatomista, discípulo direto e herdeiro da tradição de Prof. Alfonso Bovero, nome este que renderia um adjetivo cujo significado era austeridade, dignidade, retidão e competência. Dos anos 30 aos 70, os possuidores de tais qualidades eram nomeados “à boca pequena” de “boverianos”.

                Após a leitura deste livreto, de autoria do Prof. Liberato Di Dio (que também conheci através dos Professores Lacaz e Veronesi) decidi conhecer mais sobre a história da medicina em SP e acabei conhecendo o Prof. Ricardo Veronesi.

                Descendente dos “italianinhos do Brás” (como ele dizia), na adolescência cogitou ser oficial da Polícia Militar de São Paulo (antiga Força Pública). Tal ideia foi deixada de lado por influência de outro nome sagrado da cardiologia brasileira: Bernardino Tranchesi. Seu grande colega de turma era outro nome honrado da cardiologia: João Tranchesi.

Formado médico em 1946 cuja nome de turma foi o Prof. Renato Locchi. Especializou-se em infectologia e em especial virologia. Currículo invejável, fundador de sociedades, detentor de prêmios internacionais e autor de leis que trouxeram grande benefício à coletividade. Em 1960 lançou seu tratado que ainda hoje é referência na especialidade.

                Conheci pessoalmente em 1993. Daí os encontros e conversas se tornaram frequentes. Ajudava-me em meus estudos de história e falava das dificuldades da carreira médica, dos sucessos, de seus trabalhos, dos vieses. Falava de seus colegas de turma, das saudades da época de faculdade e de seus inesquecíveis mestres. Com muito carinho comentava de sua saudosa esposa Ofélia. Suas filhas e netos eram motivo de grande orgulho.

Veronesi era polêmico. Conservador nas esferas políticas. Possuía seus desafetos políticos e também no próprio meio médico. Talvez hoje, se vivo, sua voz seria mais ouvida em virtude da podridão política que vivemos. Seria um feroz combatente da esquerda brasileira e de toda a chaga que nos tem imposto.

                Um dia me surpreendi com um telefonema. Fora convocado a comparecer em sua casa, no bairro do Pacaembu, em São Paulo.

                Marcamos a data que não interferiria em meu calendário escolar e lá compareci.

                Chegando lá, havia uma papelada amarela jogada nos sofás e no chão. Fotos e anotações. Queria compartilhar comigo seu mais novo trabalho: a organização das comemorações do cinquentenário de sua turma de medicina. Mostrou-me cartas, fotos, o projeto do livro que estava confeccionando com outros colegas de turma. Parecíamos duas crianças ajoelhadas vendo papéis. Mostrou parte do livro escrito à mão por ele. Perguntava o que eu achara, pediu algumas opiniões (quem seria eu pra aconselhar um homem de sua envergadura?).


                Meses depois eu recebia em casa um exemplar com uma belíssima dedicatória. O exemplar está guardado com zelo. A dedicatória muito me enlevou. Não mais a um mero aluno, e sim ao “amigo”. Amizade que sempre me orgulhei.

                Um de seus ensinamentos que talvez mais me tenha marcado: “Orgulhe-se de sua escola! Honre sempre o nome de sua escola, e nunca se esqueça dela!”

Tenho tentado, mestre! Tenho tentado!

Numa de nossas conversas, regadas com um pouquinho de uísque, ele me disse: “Você é um idealista e valoriza a história. Isso é raro hoje em dia. Se Locchi vivo fosse e te conhecesse, seria considerado um boveriano”.

                Quem me dera, Professor. Quem me dera! Falta muito, muito...

    Hoje faz 10 anos que o mestre se foi, aos 85 anos.


                Saudades...

domingo, 19 de janeiro de 2014

Uma rua como aquela

Uma rua como aquela

Rua Artur Orlando - São Paulo.
          Tenho uma dívida moral com o meu passado, com a minha infância. Não me recordo o ano, se 1981 ou 1982, quando éramos obrigados a ler na escola (Escola Municipal de Primeiro Grau Prof. José Ferraz de Campos, em São Paulo) um livro a cada bimestre. Desta leitura haveria uma prova pra averiguar se o aluno dedicara (ou não) tempo pra se aprimorar nesta arte.

Já direi de antemão que o primeiro livro (de leitura obrigatória) não o li! Até ontem, pelo menos.

Sendo relapso ao não ter lido o livro para a prova recorri a um de meus amigos (amizade que existe até hoje, e não por este motivo!) e perguntei sobre o livro. Ele me narrou a estória, os personagens e todo o enredo. Acreditem: fui bem ao teste! E amarguei uma dívida moral com meu passado que a encerro hoje, 30 anos depois. Nome do livro: 

”Uma rua como aquela”.


Na medida em que o Maurício Miguel (o nome é real!) me contava sobre o livro uma angústia se apoderava de mim. Ele resumia e aquilo me era um açoite! Como tive a estultice ao me privar de uma leitura tão fascinante para a transição infância - adolescência! Como pude ser tão vil?

No bimestre seguinte, arrependido por minha conduta no anterior, recordo de ter lido o indicado: “O Menino e o Presidente”. Ah meus amigos, foi mais ou menos por aí que a doença começou. Nunca mais parei de ler e de fazê-lo compulsivamente. Vejo meu garoto de 8 anos já com sua bibliotecazinha, vive lendo livros pela casa ou alhures e fico muito feliz que a doença o tenha atingido. A menor também está no mesmo caminho. Curiosamente tenho comprado e guardado todos os livros que foram indicados nos idos de 80. Aproveitei e reli vários deles neste dezembro.

Retornando ao passado: o livro “Uma rua como aquela” é sobre uma rua comum da periferia de São Paulo. As brincadeiras de rua, os jogos de futebol, as árvores frutíferas da vizinhança, as primeiras paqueras, brigas e por aí vai. Em minha busca ao passado encontrei uma edição autografada pela autora num sebo de São Paulo. E é esta que leio.

Impossível para mim (um inapto aprendiz de memorialista) dissociar a leitura do livro daqueles idos de 1980, na rua em que vivi minha infância. Não há como lê-lo e não recordar da Rua Artur Orlando, na periferia de minha querida São Paulo. Rua esta onde joguei bola, brinquei de polícia e ladrão, amarelinha, esconde-esconde, beijo-abraço e aperto de mão, mão na mula e tantas outras...

Lembro que a rua inicialmente não era asfaltada. Era o lugar perfeito pra cavar os buraquinhos e jogar bolinha de gude. "Médis quatro não dô nádis! Quatro e quatrinho!" Esses eram os gritos dos viciados no "esporte".

Depois veio a fase da rua asfaltada. Nas partidas de futebol os chinelos ou tijolos nos serviam de traves. Até porque jogar bola no asfalto com tênis era um luxo desnecessário. Quanta tampa de dedão foi arrancada nas calçadas da Artur Orlando. Depois as mães destes guerreiros vinham com aquele "Merthiolate" que era a representação do próprio inferno na terra. Queimava até a alma! Quanta saudade deste tempo.

Dia de chuva era quase que obrigatório descer ao capinho do Fluminense (time do bairro) e jogar futebol no meio do barro. Lama pura! As mães que o digam a hora que tinham de lavar roupa.

Havia duas casas que eram o quartel general de toda a gangue. Ali todas as brincadeiras e festas eram planejadas. Uma casa era a do casal Flávio e Nereide David. Sr. Flávio era policial militar. Quem não o conhecia, ao ver aquele homenzarrão fardado com o semblante sério, certamente teria medo ao mexer com as filhas deste senhor. Mas era a casca. “Seu” Flávio era a bondade. Recordo quando pequeno me presenteou com um quepe da polícia militar. O quão fiquei orgulhoso do mimo. Anos depois confidenciávamos nossas experiências de leitores. Foi através dele que conheci Emilie Zolá. Dona Nereide era o bom humor em pessoa. Alegre, feliz e brincalhona! Quanta saudade de Dona Nereide. Precocemente partiu pro outro lado.

Talvez a casa mais alegre era a casa imediatamente ao lado. A casa do "Seu João e Dona Maria". Ali era o ponto de encontro da criançada. Um simpático casal de baianos cuja casa era de todos. Toda a garotada a frequentava. As festas juninas, a fogueira, os amigos secretos, Páscoa... Tudo era arquitetado pelos maiores (eu era da turma dos pequenos). Lembro que uma vez foi encenada uma peça teatral baseada numas das estórias de Maurício de Sousa, o "Cascão Borralheiro", interpretado de forma "magistral" pelo meu irmão. A revista era de 1976. Acabo de garimpá-la num sebo e a comprarei para presenteá-lo. Receberá o script original de seus 15 minutos de glória na dramaturgia da periferia paulistana. Lembrará?

A garagem do casal Cunha foi modificada em palco e lugares para a platéia. Os pais eram convidados e por um preço módico assistiam às apresentações de seus filhos. O dinheirinho ganho, que era pouco, era empenhado a comprar minúsculos ovos de páscoa para cada uma das crianças.

Não havia luxo. O que havia, dinheiro algum no mundo é capaz de comprar.

Foi nessa rua que meu irmão me ensinou andar de bicicleta na sua “Fórmula C”.  No período de aprendizagem, ele me levava no cano da frente e brincávamos que a rua era o rio Mississipi e a bicicleta era o barco Robert Lee. Não podíamos cair dela que era afogamento na certa. Lembrará meu irmão disso?

As histórias do “Seu” João Canella: um exímio artista plástico. Quantas vezes eu o admirava pintar suas telas naquele ambiente denso de tabaco para cachimbo. Ele narrava os episódios que vivenciou nos frentes de batalha da segunda grande guerra. Contava a Tomada de Monte Castello, as batalhas pela Itália, os amigos cujo sangue jorrou e deram o ultimo suspiro pelos campos da Itália. Sempre narrava com a fala mansa, a voz embargada e os olhos chorosos. Depois de uma lágrima, uma profunda baforada de cachimbo, ele dizia: “Não vale a pena morrer tão jovem. Guerra alguma vale a pena”.

Os Devecchi, os Miguel, Petraca, Petrochelli, Ferrer, Portapila, Moura, David, Cunha, Ageia, Gonçalves, Lopes dos Santos, Assalim, Castanha, Martins e tantas outras famílias cujos pais e filhos foram personagens de uma linda história: a história de nossas vidas!

Descobri que Artur Orlando foi jurista, político e ensaísta falecido em 1916. Escreveu que:

"O amor tem as suas razões, que a lógica não compreende,
como o destino tem as suas ironias, que a razão não explica."

Eis aqui, de maneira simples, umas linhas declarando meu amor pela rua de meu passado, rua esta que visita meus sonhos.

Meu querido amigo Maurício Miguel: obrigado por tua amizade de tantos e tantos anos. Beirando os quarenta anos! Li o livro! Acho que esta dívida moral minha para comigo mesmo está paga.



Obrigado à rua Artur Orlando e a todos seus moradores. Jamais haverá neste mundo uma época como a que vivemos, época mágica, numa rua de sonhos, numa rua que nos trouxe à vida, que nos viu crescer e desabrochar. 

Jamais haverá  ”Uma rua como aquela”.